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(Foto: Free Images)
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A
diferença entre o remédio e o veneno muitas vezes está na dose, diz o ditado.
No caso da cafeína, pode estar também na idade de quem a consome. Enquanto em
indivíduos adultos a substância parece proteger o cérebro de danos causados
pelo estresse que podem desencadear quadros depressivos, na vida intrauterina
pode atrapalhar o desenvolvimento cerebral e representar um fator de risco para
doenças como epilepsia.
As conclusões
são de estudos feitos com camundongos e apresentados durante a nona edição do
Congresso Mundial do Cérebro (IBRO 2015),
realizado no Rio de Janeiro de 7 a 11 de julho.
Na pesquisa coordenada há cerca de 15
anos por Rodrigo Cunha, da Universidade de Coimbra, em Portugal, o objetivo é
investigar em que medida a cafeína pode prevenir o desenvolvimento de
depressão, doença que afeta cerca de 15% da população e representa a primeira
causa de incapacitação segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O grupo, que envolve colaboradores da
Alemanha, Estados Unidos e Brasil, sujeitou ao longo de três semanas dois
grupos de camundongos a situações de estresse crônico e imprevisível. Um dos
grupos começou a receber duas semanas antes do experimento cafeína na água de
beber. Testes mostraram que a concentração da substância encontrada na corrente
sanguínea dos animais era equivalente à de um humano adulto que consome entre
duas e três xícaras de café por dia.
“Tentamos
reproduzir no modelo animal aquilo que todos nós humanos sentimos naquele
momento da vida em que tudo vai mal. O carro quebra, perde-se o emprego,
termina-se um relacionamento amoroso, descobre-se que um amigo tem câncer. Tudo
é uma desgraça e, muitas vezes, esse conjunto de situações dá origem a um
quadro depressivo”, contou Cunha em entrevista à Agência FAPESP.
No modelo animal, o estresse era
induzido por situações como agitar a caixa onde estavam os camundongos durante
alguns segundos, privá-los de comida temporariamente, dar banhos de água fria
ou pequenos choques nas patas.
Uma série de testes bioquímicos,
neuroquímicos, eletrofisiológicos e comportamentais foi feita após o período do
experimento para avaliar fatores indicativos de depressão nos dois grupos.
“Como o animal não pode dizer se está
ou não deprimido, avaliamos seu comportamento com uma série de testes já bem
padronizados”, contou Cunha.
Um dos testes consiste em colocar o
animal em uma situação de nado forçado por alguns minutos. Em condições
normais, o roedor tenta escapar a todo custo. Um camundongo deprimido, porém,
costuma desistir rapidamente e começa a boiar. “É como se ele esperasse que a
vida resolvesse seu problema”, comentou Cunha.
Roedores deprimidos também demonstram
menos interesse em se esforçar para alcançar uma bebida açucarada (perda de
prazer ou anedônia), déficit de memória e tornam-se mais retraídos em momentos
de interação social.
Também foi medido o nível de
corticosteroide – o equivalente em animais ao cortisol, o hormônio do estresse
– de algumas proteínas que costumam estar alteradas em quadros depressivos e o
fluxo de informações em determinados circuitos neuronais.
“Observamos que a informação continua
fluindo normalmente, o que muda na depressão é o sentido que se dá à informação
que chega. A capacidade de se adaptar rapidamente em função de pistas externas
parece perdida nos animais deprimidos”, contou Cunha.
Com base nos resultados dos testes, os
pesquisadores concluíram que o grupo tratado com cafeína apresentou uma
quantidade significativamente menor de sintomas depressivos em relação ao
controle. O passo seguinte foi caracterizar o alvo molecular responsável por
esse efeito observado.
“Nossos estudos anteriores já
mostravam que a cafeína se liga a um receptor celular chamado A2A para
adenosina e queríamos demonstrar que manipulando farmacologicamente ou
geneticamente esse receptor conseguiríamos interferir nos resultados”, disse o
pesquisador.
Existente em grande quantidade nos
neurônios, o receptor A2A se liga a uma substância chamada adenosina, um dos
componentes da molécula de ATP (adenosina trifosfato), que é essencial para o
metabolismo energético.
“Quando há uma situação de estresse ou
qualquer disfunção no sistema nervoso, ocorre um maior consumo de ATP,
consequentemente uma maior liberação de adenosina. A adenosina em excesso se
liga aos receptores A2A e desencadeia um efeito em cascata que faz esse sistema
trabalhar ainda pior”, contou Cunha.
Como a cafeína também se liga ao
receptor A2A, acrescentou o pesquisador, ela bloqueia a ligação com a
adenosina, impede o efeito em cascata e reequilibra o sistema. “Por isso,
quando estamos cansados e consumimos cafeína, por exemplo, nos sentimos mais
alerta. Ela também aumenta a tolerância a vários sinais que podem causar
hiperirritabilidade no indivíduo”, explicou Cunha.
Em um dos experimentos, o grupo
administrou ao mesmo modelo animal o fármaco istradefilina, que também inibe a
ação do receptor A2A e tem sido usado no tratamento da doença de Parkinson.
Nesse caso, também foi observado no grupo de camundongos tratados um menor
desenvolvimento de sintomas depressivos em comparação ao controle.
“Fizemos o nocaute do gene que
expressa o receptor A2A para mostrar que isso conferia o mesmo efeito protetor
da cafeína. Fizemos também o nocaute apenas em neurônios principais para
mostrar que o efeito que observamos está presente diretamente no neurônio e não
depende de interação com outros sistemas”, explicou.
Os resultados
mais recentes da pesquisa foram divulgados em maio na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
Na avaliação de Cunha, os achados corroboram o que já havia sido demonstrado em
estudos epidemiológicos com humanos.
“Um deles acompanhou ao longo de
vários anos mais de 50 mil enfermeiras no Havaí, uma ilha onde todos têm estilo
de vida e alimentação muito semelhante. Concluiu-se que aquelas que consumiam
cafeína apresentaram menor necessidade de ajuda do ponto de vista
psiquiátrico”, contou Cunha.
Ele ressalta, porém, que novos estudos
precisam ser realizados para validar o receptor A2A como um alvo terapêutico em
humanos.
“O grande problema de transpor essa
informação para o homem é que somos sempre mais complicados. O receptor é uma
proteína formada por uma cadeia de aminoácidos e essa cadeia pode ter pequenas
variações de acordo com cada indivíduo. Isso é o que chamamos de polimorfismo
genético e é o que faz as pessoas serem mais ou menos sensíveis à cafeína”,
explicou Cunha.
O grupo de Coimbra também investiga se
a inibição do receptor A2A pode prevenir as modificações cognitivas associadas
a doenças como Alzheimer.
“Em estudos anteriores com modelos
animais de Alzheimer, vimos que, quando se iniciam os problemas mnemônicos, o
número de receptores A2A aumenta consideravelmente. Isso parece ser uma das
causas da patologia e representa também uma oportunidade de tratamento”, disse.
O outro lado
No trabalho coordenado por Christophe
Bernard no Institut de Neurosciences des Systèmes (INS), ligado à Aix-Marseille
Université da França, foram avaliados os efeitos do consumo da cafeína durante
a gestação e a lactação em camundongos.
Também nesse caso, as fêmeas de
camundongo foram habituadas a ingerir cafeína na água, em concentrações
equivalentes a duas ou três xícaras de café por dia. Depois era feito o
cruzamento e mantida a oferta de cafeína durante a gestação e o período de
lactação.
Os resultados
foram publicados em 2013 na revista Science Translational Medicine. “Observamos
que a cafeína causa um atraso na migração para o hipocampo [região cerebral relacionada com memória e percepção espacial]
de um grupo específico de neurônios gabaérgicos [que secretam ácido
gama-aminobutírico]. Eles atingem o alvo, mas com um atraso de
vários dias. Isso atrapalha o processo de construção do cérebro e causa um
desequilíbrio”, contou Bernard à Agência FAPESP.
O efeito foi observado tanto na
análise do tecido cerebral de camundongos quanto de macacos, que apresentam
maior semelhança com os humanos.
Análises in vitro mostraram que, quando a cafeína se
liga ao receptor A2A nos neurônios, a velocidade de migração é reduzida em 50%.
“Isso sugere que a adenosina seja necessária para o processo de migração e essa
é uma das coisas que estamos investigando atualmente”, contou.
O grupo francês também avaliou os
efeitos desse atraso na migração neuronal nos filhotes e, posteriormente, nos
camundongos adultos.
“Em decorrência do desequilíbrio
causado pelo atraso dos neurônios, os filhotes se tornaram mais suscetíveis a
sofrer de epilepsia e a apresentar convulsões febris. Apresentam um limite de
tolerância ao aumento da temperatura corporal cerca de 1,5 grau Celsius menor”,
contou Bernard.
Ao avaliar os camundongos já adultos,
os cientistas notaram que outro grupo diferente de neurônios gabaérgicos estava
faltando, causando, novamente, um desequilíbrio no funcionamento do cérebro.
“Testes comportamentais mostraram que
a memória espacial nesses animais é menos eficiente que as dos camundongos
controle. É um efeito sutil, mas está presente. Claro que se a cafeína
estivesse causando algo realmente ruim no cérebro todos nós já saberíamos”,
disse.
Bernard defende a necessidade de os profissionais
de saúde investigarem o consumo materno de cafeína durante a gestação quando
atenderem em hospitais crianças com crises convulsivas. “Dessa forma poderíamos
tentar ver se há também em humanos uma correlação entre consumo de cafeína e
aumento na probabilidade de ter epilepsia.”
Limite de segurança
Presente não apenas no café como
também em diversos tipos de chá, refrigerantes, chocolates e bebidas
energéticas, a cafeína é de longe a substância psicoativa mais consumida no
mundo e não há consenso sobre qual seria o limite diário de segurança.
Segundo relatório publicado em maio
pelo comitê científico da European Food Safety Authority (EFSA), o consumo de
até 400 mg ao dia (cerca de 4 xícaras de café) por indivíduos adultos com em
média 70 kg e que não estejam gestantes não representaria riscos significativos
de saúde. Para mulheres grávidas ou lactantes, o valor supostamente seguro
seria de 200 mg ao dia.
Bernard defende a necessidade de
realizar estudos clínicos que confirmem se a quantidade de 200 mg ao dia é de
fato segura para o desenvolvimento cerebral durante a gestação ou se pode
representar um fator de risco para o desenvolvimento de patologias na vida
adulta.
“No trabalho de 2013, avaliamos apenas
o hipocampo. Agora estamos olhando o cérebro mais globalmente e vendo que
outras regiões, como o córtex, também são afetadas, pelo menos em camundongos.
Em um modelo animal de Alzheimer, estamos investigando se o consumo de cafeína
na gestação pode facilitar de alguma forma o desenvolvimento da doença”,
contou.
Fonte: Agência FAPESP.
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