segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A Toxicologia no Incêndio em Santa Maria (RS)


Mais um incêndio no país e, desta vez, com um número assustador de vítimas. O incidente ocorreu há, exatamente, uma semana na boate Kiss, na Cidade de Santa Maria (RS). Na noite do último sábado, 02/02, o número de mortos decorrente do incêndio subiu para 237. Encontram-se ainda hospitalizados 113 feridos, dos quais, segundo boletim oficial, 73 estão em estado grave e internados em unidades de terapia intensiva.

O fato traz à tona, em todo o país, a discussão sobre a segurança em locais de eventos, como as boates. Analisando-se a questão sob o ponto de vista toxicológico, outras questões devem ser observadas: os profissionais de saúde que atuam em emergências tem conhecimento em Toxicologia para identificar e tratar adequadamente vítimas de intoxicação? Dispõe o país de antídotos para tratar vítimas de grandes incidentes químicos?

Não podemos esquecer que os incêndios apresentam, também, a sua relevância do ponto de vista toxicológico. Não só para a população em geral e para os profissionais de saúde, mas também para os profissionais que combatem o fogo.

O farmacêutico-bioquímico Jucelino Nery, coordenador de apoio diagnóstico e terapêutico do Centro de Informações Antiveneno da Bahia – Ciave, ressalta que para o manejo adequado de um paciente intoxicado, é importante consultar os Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIATs), como o Ciave, os quais são serviços são especializados em reconhecer e orientar o tratamento das intoxicações, baseado nas evidências disponíveis, evitando o emprego de tratamentos inefetivos, contraindicados ou tardios.

“A fumaça é uma mistura complexa constituída de ar quente, partículas sólidas e líquidas em suspensão, além de gases tóxicos, o que a torna extremamente perigosa”, complementa o farmacêutico. Enfatiza, ainda, que estes gases tóxicos liberados em incêndio dependem, em grande parte, do tipo de material que é queimado. Dependendo da sua concentração, a morte poderá ocorrer por asfixia simples e/ou por asfixia química (intoxicação).

Mesmo as pessoas que escapam com vida de um incêndio ainda sofrem riscos após o incidente, em virtude da ação dos produtos da combustão do tipo física (calor), químicas (intoxicação) e mecânica (pneumonite por aspiração de partículas sólidas e líquidas).


As substâncias tóxicas liberadas nos ambientes incendiados podem ter origem em produtos secundários formados logo após os produtos da queima terem sido gerados. Essas substâncias permanecem ativas quimicamente, mesmo depois das chamas terem sido apagadas e por um longo tempo que só depende das condições locais de ventilação, seja ela natural ou artificial. Elas podem agir sobre o sistema respiratório através de três diferentes mecanismos:

- irritação: por lesão dos tecidos decorrente de alterações do pH, por efeitos tóxicos específicos ou por reações químicas inespecíficas. É o caso do ácido clorídrico (cloreto de hidrogênio, HCl), óxido nítrico (monóxido de nitrogênio, NO), metanol, dióxido de nitrogênio (NO2), amônia (nitreto de hidrogênio, NH3), sulfeto de hidrogênio(H2S), dióxido de enxofre (SO2) e ácido cianídrico (cianeto de hidrogênio, HCN). A irritação provoca uma inflamação nas membranas das mucosas das vias aéreas e dos olhos;
- asfixia: através do deslocamento do oxigênio (asfixia física) por outras substâncias ou pela ação sobre o metabolismo celular através do monóxido de carbono (CO), H2S e HCN, entre outros, levando a uma intoxicação (asfixia química);
- queimadura – decorrente do efeito térmico proveniente das altas temperaturas dos gases, vapores, fumos, gotículas e material particulado em suspensão no ar.

“No caso específico de Santa Maria, além da liberação de monóxido de carbono (CO), houve a produção de gás cianeto, altamente tóxico, resultante da combustão da espuma de poliuretano usada no isolamento acústico do teto da boate e que, possivelmente, foi o responsável pela morte de grande parte das vítimas do incêndio”, afirmou Jucelino.

O cianeto de hidrogênio é liberado da combustão de materiais ricos em nitrogênio como o poliuretano, nylon, certos plásticos e resinas, lã e seda. Apresenta alta mobilidade e capacidade de penetração em substâncias ou materiais porosos, como paredes e muros, por possuir baixo peso molecular. Os efeitos da intoxicação do HCN nas fases iniciais se distinguem do CO, embora apresentem similaridade nos efeitos finais. Enquanto o processo inicial de intoxicação do CO tende a ser lenta, a intoxicação por HCN é rápida e severa.

A inalação do gás cianeto produz sintomas que surgem muito rapidamente e a sua severidade está diretamente relacionada com a sua concentração no ambiente. Quando absorvido, liga-se à enzima citocromo-oxidase inibindo a fosforilação oxidativa, metabolismo aeróbico e respiração celular. As vítimas expostas ao cianeto podem desenvolver tontura, confusão mental, ansiedade, respiração excessivamente acelerada (taquipnéia), taquicardia, além de outros sintoma, podendo evoluir para óbito.

Para tratamento da intoxicação cianídrica existem algumas alternativas: o edetato dicobáltico (Kelocyanor®), o 4-dimetilaminofenol (4-DMAP), o kit anti-cianeto (formado pelas soluções nitrito de amila, nitrito de sódio e tiossulfato de sódio) e a hidroxicobalamina.

Os Estados Unidos doou 140 kits do medicamento injetável hidroxicobalamina, que chegaram no último sábado, para o tratamento das vítimas sobreviventes do incêndio na boate Kiss (RS) e que seriam distribuídos entre os hospitais de Porto Alegre e Santa Maria. Entretanto, vale lembrar que o efeito do cianeto é muito rápido e o tratamento específico deve ser o mais precoce possível. Assim, em função do tempo decorrido, a antidototerapia não mais estaria indicada.

Segundo Jucelino Nery, há uma grande dificuldade na obtenção de antídotos no país decorrentes de problemas de ordem científica, econômica, administrativa e política. Só para exemplificar, dos antídotos citados, os dois primeiros não são disponibilizados no mercado nacional, o kit anti-cianeto só se consegue obter através de poucas farmácias de manipulação (nenhuma na região nordeste) e a hidroxicobalamina (vitamina B12) só era disponibilizada no mercado em uma concentração muito inferior àquela utilizada como antídoto na intoxicação por cianeto, não mais estando disponível porque o laboratório que importava o princípio ativo para a produção do medicamento parou de fazê-lo.

Fica evidente a necessidade de se implementar os bancos de antídotos existentes nos centros de assistência toxicológica, garantindo a existência de estoques contingenciados para grandes desastres. Além disso, é preciso criar uma rede nacional de distribuição de antídotos para garantir a sua obtenção, visto que muitos destes produtos só estão disponíveis no mercado internacional e, em uma eventual necessidade, não haverá tempo hábil de importá-los para poder usá-los na terapia das vítimas dentro do prazo necessária para obter a eficácia desejada.

Fonte: Ciave. Leia mais.

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